Ao cabo de mais de meio século de dedicação à causa da arbitragem, entre várias funções desempenhadas, dentro e fora do campo, Ezequiel Feijão abre o baú das memórias e recorda alguns momentos marcantes de uma carreira preenchida e da qual se orgulha.

Aos 78 anos, o antigo árbitro de futebol e dirigente da AF Setúbal, recentemente homenageado pelo Conselho de Arbitragem, aponta as características daquilo que deve ser um bom árbitro, lembra a agressão de que foi alvo durante um jogo, mas garante que, ao olhar para trás, voltaria a seguir uma carreira na arbitragem.

Ezequiel Gonçalves Feijão, natural de Alhos Vedros, Moita, que elegeu o Barreiro para residir, é reconhecidamente um dos nomes de referência da nossa arbitragem, distrital e nacional. Com o fechar da época 2021/2022 o antigo árbitro de futebol da primeira categoria decidiu interromper uma ligação mais efetiva com a estrutura da arbitragem associativa, facto que, todavia, não é sinónimo de total afastamento do envolvimento colaborativo institucional, uma vez que Ezequiel Feijão garante continuar a estar “disponível para ajudar sempre que for necessário”.

Por ocasião da Gala de Encerramento das Atividades 2021/2022, o Conselho de Arbitragem da Associação de Futebol de Setúbal não deixou de assinalar o momento com uma homenagem a Ezequiel Feijão que, recuperando a recente entrevista ao afsetubal.pt do presidente daquele órgão associativo, José Manuel Esteves, “foi mais que justa”.

“Além do excelente árbitro e observador que marcou o seu passado, foi também um formador de excelência dos nossos árbitros e observadores ao longo de mais de cinco décadas, sendo que esta singela homenagem apenas teve lugar porque foi seu desejo terminar oficialmente a sua prestação”, havia registado, recorde-se, José Manuel Esteves.

E foi uma homenagem sentida “com grande satisfação”. “Vi reconhecida a minha dedicação de 56 anos à causa da arbitragem, setor onde desempenhei diversas funções, desde árbitro e formador. Integrei a Comissão de Apoio Técnico, fui presidente do Conselho de Arbitragem da Associação de Futebol de Setúbal (de 1996 a 2001), observador da Federação Portuguesa de Futebol e da Liga Portuguesa de Futebol Profissional”.

Foi com este libertar de sentimento, complementado com detalhe curricular, que Ezequiel Feijão começou por partilhar ao afsetubal.pt recordações de uma carreira com marca na arbitragem.

José Manuel Esteves com Ezequiel Feijão (na foto, à direita) aquando da homenagem promovida pelo Conselho de Arbitragem da AF Setúbal 

 

Árbitro depois de um pé partido

Tudo começou em 1966, com 21 anos de idade. “Eu tinha sido jogador de futebol, durante seis épocas, ao serviço do Clube Desportivo de Arroios, emblema que representou no escalão júnior e sénior, nas provas da Associação de Futebol de Lisboa”, enquadrou Ezequiel Feijão, antes de explicar que o motivo pelo qual travou a continuidade da prática futebolística e enveredou pela arbitragem esteve associado à fratura de um pé, na época 64/65. “Decidi deixar de jogar”.

Decisão tomada, mas a ligação ao mundo do futebol não teve um ponto final. “Um vizinho meu, que tinha sido árbitro, disse-me que estava aberto um curso de árbitros de futebol no Barreiro. Inscrevi-me e, apesar da ação formativa ter decorrido numa altura em estava a cumprir o serviço militar, fiquei aprovado e a partir daí começou a minha carreira na arbitragem”, contou o antigo bancário de profissão.

E o início não demorou. Pouco tempo depois de adquirido o estatuto, o árbitro Ezequiel Feijão estreou-se, como fiscal de linha, num jogo de juvenis, realizado na Quinta do Anjo, e mais tarde fez o debute na qualidade de chefe da equipa de arbitragem, no Campo Santa Bárbara, no Barreiro, igualmente numa partida do mesmo escalão. “Correram bem”, lembrou, sobre os dois encontros de estreia.

Agressão resultou em condenação

O percurso no âmbito das provas distritais evoluiu e o reconhecimento da sua qualidade haveria de projetá-lo para os patamares superiores da arbitragem nacional. Mas, antes, Ezequiel Feijão passou por aquele que foi o momento mais complicado que viveu durante um jogo sob a sua arbitragem.

“Não tive jogos muito complicados de dirigir, mas recordo um, era ainda árbitro distrital, realizado em 1975, entre as equipas seniores do GD Lagoa da Palha e do Imparcial FC de Alcochete. Nesse jogo, ainda na primeira parte, houve uma agressão de um jogador a um adversário e que resultou na respetiva expulsão. Nessa sequência, um colega de equipa do jogador expulso acabou por agredir-me com um soco no olho. Fiquei com o olho ‘à Belenenses’”, começou por contar.

“Dei o jogo por terminado, mandei identificar o jogador e, mais tarde, movi uma ação em tribunal, que acabou por ser julgada a meu favor, sendo o jogador agressor condenado a pagar-me, naquela altura, 5 mil escudos. Disse ao juiz que não queria receber o dinheiro e o valor acabou por ser doado, por minha indicação, a uma instituição de solidariedade social de Setúbal”, detalhou.

Ezequiel Feijão, ainda sobre este episódio, recorda que, “apesar dos pedidos de desculpa e das tentativas que os familiares do jogador fizeram para que eu tirasse a queixa, nunca o fiz, porque se o fizesse estaria a pôr em causa a arbitragem perante um ato de agressão”.

Cortês Baptista, Ezequiel Feijão e Rui Ferreira (na foto da esquerda, para a direita)

 

Supertaça foi ponto alto

Sustentado pela experiência adquirida e no trabalho de qualidade evidenciado, Ezequiel Feijão torna-se árbitro da 1.º categoria nacional na época 1979/1980, sendo um Beira Mar-Sporting de Espinho, o seu primeiro jogo, de muitos, no campeonato da 1.ª Divisão.

Esteve 12 anos na primeira categoria da arbitragem do futebol luso, de 1979 a 1991.

Instado a apontar o jogo mais marcante que dirigiu, Ezequiel Feijão guarda de forma particular o dia 8 de dezembro de 1983, data em que o Estádio das Antas foi palco da 1.ª mão da Supertaça Cândido de Oliveira, no jogo entre o FC Porto e o SL Benfica.

“Esse foi um jogo importante, que me marcou. Um clássico do nosso futebol”, lembrou de forma especial, o antigo árbitro que, apesar de não ter alcançado o estatuto internacional, teve a oportunidade de atuar muitas vezes ao estrangeiro, como fiscal de linha, integrando equipas de arbitragem lideradas por árbitros portugueses.

Ezequiel Feijão (na foto, à esquerda) num jogo internacional entre as seleções juvenis de Portugal e França, realizado no Estádio do Bonfim, em Setúbal, integrado na equipa de arbitragem chefiada pelo árbitro italiano Latanzza sendo Marques Pires o outro fiscal de linha

A preenchida carreira de Ezequiel Feijão enquanto árbitro fico dada por concluída no início da década de 90, sem anúncio prévio.  

“O meu último jogo oficial foi um Fafe-Trofense, na época de 1990-1991, em 12 de maio de 1991, a contar a última jornada para a Segunda Divisão Nacional “B” - Zona Norte. À partida, esse não era suposto ser o meu último jogo, porque ainda me restava uma época para fazer, tinha 47 anos, mas a minha classificação de final de época não correspondeu às minhas expetativas, tendo em conta a boa época que tinha feito. Acabei por decidir encerrar a carreira naquele ano”, apontou.

Ezequiel Feijão ascendeu a árbitro de futebol da 1.º categoria nacional na época de 1979/80

 

Cinco anos a liderar a arbitragem distrital

Arrumado o apito, o espírito colaborativo de Ezequiel Feijão no plano da arbitragem não refreou e continuou a ser demonstrado no plano do dirigismo no âmbito do Núcleo de Confraternização de Árbitros de Futebol do Barreiro e a nível distrital, assumindo, entre 1996 e 2001, a presidência do Conselho de Arbitragem da Associação de Futebol.

A liderança do órgão regional aconteceu, recorda, “a convite do então presidente da Direção, Amândio de Carvalho, numa altura em que a o Conselho de Arbitragem passava por um período conturbado, com atrasos nos pagamentos dos prémios aos árbitros, o que motivou, mesmo, uma greve”.  

Foi um cargo muito difícil… O número de árbitros era muito reduzido, e muito embora o número de jogos fosse menor em comparação com o presente, era muito difícil nomear árbitros para todas as partidas”, avaliou Ezequiel Feijão, que para assumir a função de presidente do órgão associativo abdicou de ser observador da FPF.

“Apesar de tudo, foi um cargo que desempenhei com muita satisfação, dedicação e muito orgulho”.

Maturidade versus juventude

Instado a avaliar a realidade da arbitragem dos tempos em que era árbitro em comparação com os dias de hoje, Ezequiel Feijão é perentório: “os árbitros do meu tempo vinham para a arbitragem mais ‘maduros’, mais experientes”.

O antigo árbitro lembra que arbitrou o primeiro jogo na 1.ª Divisão com 35 anos. “Hoje, há árbitros que sobem com 23, 24, 25… Não têm muita experiência. Muitos nem sequer jogaram futebol”, observa. 

“A realidade de hoje, com árbitros a apitarem desde muito novos, 15, 16, 17 anos, potencia a que quando chegam aos seniores, muitos já estejam saturados. Bem sei que começam a apitar escalões que não havia no meu tempo e o seu envolvimento é muito válido. Mas, no meu tempo chegavam já com mais experiência, aliás, muitos já depois de acabar a carreira de futebolista, com mais de 30 anos”, assinalou.

Foram muitos os jogos a contar para a 1.ª Divisão dirigidos por Ezequiel Feijão (na foto, ladeado por Neto Afonso e Hélio Pereira nos 12 anos em que atuou na qualidade de árbitro de 1.ª Categoria Nacional

Atividade salutar e a caraterização de um bom árbitro

A escassez de árbitros, tendo em conta o número de jogos, continua a ser uma dificuldade expressiva no âmbito da nossa arbitragem. Anualmente, os cursos de candidatos a árbitros registam números de inscrições relevantes, mas a retenção espelha outra realidade.

Ezequiel Feijão tem dois netos árbitros e tem vindo a ser um recrutador relevante para o setor.

E como argumentaria, por exemplo, para convencer um jovem a seguir uma carreira na arbitragem? “Diria que é uma opção que lhe permitiria desenvolver a prática desportiva com regularidade, ter a possibilidade de viajar, de correr o país todo, aumentar os contatos sociais e estar envolvido num ambiente saudável”, elencou.

Para Ezequiel Feijão “a arbitragem é uma coisa salutar” e “quem fica, gosta”.

E quem fica segue a reforçar a vertente formativa e a acumular experiência no sentido de se apresentar, a cada dia, melhor árbitro. Mas, como se pode caraterizar um bom árbitro?

Para Ezequiel Feijão, por exemplo, “um bom arbitro é aquele individuo que não dá nas vistas. Passa despercebido dentro do campo. Conhece bem as leis e sabe aplicá-las. Não é arrogante, sabe dialogar com os dirigentes e com os jogadores”, começou por descrever.

Mas, um bom árbitro “também se distingue logo pela maneira como se apresenta aquando da chegada aos campos, como cumprimenta e comunica com os agentes ligados ao jogo e adeptos. Mesmo a opção do vestuário com que se apresenta de ser adequado”, realça.

No âmbito do jogo, para Ezequiel Feijão “o árbitro deve promover uma comunicação informativa e evidenciar atitudes de serenidade para com os jogadores”. “Os bons árbitros não são aqueles que mostram muitos cartões amarelos e vermelhos, são os que sabem evitar. Os que são pró-ativos”, avaliou.

Muitos amigos, o clube de sempre e o estatuto de mister

Mais de meio século dedicado à arbitragem, uma vida… E, afinal, o que Ezequiel Feijão guarda da atividade ligada ao sector? “Guardo muitos amigos, por este país fora... Continuo a cruzar-me com pessoas que me reconhecem e me cumprimentam, muitos ligados à arbitragem e a clubes”, revela, espelhando um sentimento de positividade que o carateriza.

O tempo não volta para trás, mas Ezequiel Feijão vai mantendo bem presente as vivências de outrora. Com os amigos, claro. “Agora, com as redes sociais, a comunicação está facilitada. No Facebook, tenho mais de 2000 amigos, muitas pessoas da arbitragem, mas igualmente dirigentes, técnicos e jogadores com quem vou mantendo contacto e recordando histórias”.

Histórias que nas quais Ezequiel Feijão foi, muitas vezes, protagonista e que contam momentos daquilo que é ser árbitro de futebol.

Ao olhar para trás, e depois dessas muitas histórias, Ezequiel Feijão não tem dúvidas: “Voltaria a ser árbitro de futebol. Por tudo o que referi. Pelos contatos sociais, pelas amizades que fiz. Recordo que quando foi tornado público que tinha deixado de ser árbitro, recebi convites de vários clubes para integrar as respetivas estruturas para assumir funções de assessoria. Sempre disse que não, porque o meu clube sempre foi e continua a ser a arbitragem”.

Esta, agradável, partilha, não terminou sem que Ezequiel Feijão recordasse mais um capítulo da ligação que sempre estabeleceu com o futebol. “Em 1986 tirei dois cursos de treinador de futebol, onde foram igualmente formandos, por exemplo, Manuel Cajuda, Francisco Barão e o saudoso Vítor Oliveira.” “Mas nunca fui treinador”.

Sobre esta ‘faceta’, Ezequiel Feijão, no exercício da função de observador da Liga, lembra um episódio em que o malogrado treinador Vítor Oliveira, então ao serviço do Arouca, nos momentos antes do jogo, fez questão de lhe apresentar aos jogadores, dizendo: “Está aqui o senhor Ezequiel Feijão, meu colega treinador”.

“Nunca cheguei a treinar, se assim fosse, deixava de ser árbitro, mas o que eu gostava era mesmo de arbitrar”.