Em 27 edições daquele que é o maior torneio formativo de futebol organizado pela Federação Portuguesa de Futebol, nunca a Associação de Futebol de Setúbal chegou tão longe, no que à classificação geral diz respeito. João Pedro Valente liberta sentimentos sobre a edição 2023 do Torneio Nacional Interassociações Lopes da Silva, realizada na Guarda e em Castelo Branco, que registou o inédito 2.º lugar para a seleção sub-14 da AF Setúbal.
Em discursos direto, o selecionador distrital da AF Setúbal lembra a Final, analisa os jogos disputados e aponta momento de especial destaque vividos em sete dias de particular intensidade e partilha numa comitiva que contou com 20 jovens talentosos futebolistas, que com certeza, vão inspirar os sonhos de muitos mais…
Faz uma semana desde que a seleção da AF Setúbal jogou, pela primeira vez, uma Final do Torneio Lopes da Silva. Que sentimentos lhe vêm à memória sobre esse dia?
Foi para todos um dia de muitas emoções, onde fica naturalmente o sentimento de frustração e tristeza por não termos conseguido vencer a Final e conquistar o Torneio Lopes da Silva, mas ao mesmo tempo o orgulho pelo percurso realizado que nos levou pela primeira vez ao jogo decisivo.
Parece-me, essencialmente, ter sido uma grande Final, digna da qualidade que existe no futebol de formação em Portugal, repleta de golos e de incerteza quanto ao vencedor.
Setúbal e Madeira chegaram a esse dia depois de afastar os crónicos finalistas deste torneio e esse é um feito que deve ser reconhecido e aplaudido.
Já houve oportunidade para ver a gravação do jogo?
Já assisti, embora confesse que tive muitas dificuldades em rever os minutos finais, até por estar numa posição mais racional e reflexiva sobre o que podíamos ter feito melhor para segurar aquela vantagem. E é nesse sentido de autoavaliação do desempenho que, enquanto treinador, que procuro analisar todas as opções que podia ter tomado. De uma forma mais prática e contextualizada, nós tivemos por três vezes em vantagem no marcador, e durante esses três momentos tivemos sempre oportunidades para dilatar o marcador, chegar na altura ao 2-0, ao 3-1 ou ao 4-2, e esse lado emocional de ‘estamos a criar oportunidades suficientes para acabar com o jogo’, retirou-nos também alguma racionalidade em momentos chave do jogo, e naqueles minutos finais, sinto que podíamos ter feito uma gestão mais eficiente com bola, mais por fora do bloco adversário, sem correr tantos riscos de verticalidade ou de manter tantas unidades envolvidas no processo ofensivo, e mantermos estruturas defensivas mais equilibradas e mais capazes de garantir a proteção da nossa baliza perante as transições do adversário.
São decisões que fazem parte da natureza do ‘Ser Treinador’, refletir sobre elas ajudarão na adoção de melhores comportamentos e procedimentos futuros.
Como avalia o percurso competitivo da nossa seleção ao longo do torneio?
Fica o registo de seis jogos muito consistentes não só a nível dos resultados, mas do processo e da qualidade de jogo que apresentamos.
Conseguimos o pleno de vitórias na 1ª Fase, frente a Bragança, Évora e Algarve, num total de 10 golos marcados e 0 sofridos.
Instalamos a convicção que iríamos estar sempre melhores de jogo para jogo e que em todos os jogos era de extrema importância ser a primeira equipa a marcar.
Ao conseguirmos fazê-lo, elevamos os níveis de confiança da equipa, os jogadores ficaram mais confortáveis numa ideia de jogo que ia de encontro às suas características.
O facto de termos terminado a 2.ª jornada com o apuramento para a Liga Platina garantido permitiu-nos chegar ao último jogo com o Algarve e fazer uma gestão mais equilibrada do tempo de utilização de todos os jogadores, mantendo o foco no resultado e no processo. A resposta dada pelos atletas foi extremamente positiva, numa vitória que nos permitiu alcançar um dos objetivos intermédios que havíamos estipulado (não sofrer golos) mas também a certeza que tínhamos 20 jogadores preparados para dar resposta à exigência dos jogos seguintes.
A Liga Platina colocou frente a frente com o vencedor e o finalista da última edição do Torneio Lopes da Silva, Braga e Lisboa, respetivamente.
Com Braga, entramos muito determinados, numa estratégia de pressionar alto, condicionando a fase de reposição e construção do adversário, recuperamos muitas bolas em zonas adiantadas, e a verdade é que com outra capacidade na definição teríamos chegado ao golo pelo número de oportunidades criadas.
Acabou por se aplicar a velha máxima de que “quem não marca, sofre" e Braga chegou à vantagem através de uma bola parada ofensiva.
A partir daqui o jogo teve demasiadas incidências, perdermos a capacidade de nos focarmos no que podíamos controlar e jogamos “mais com o coração do que com a cabeça’. No entanto, o coração deles foi tão grande, que acreditaram até ao último segundo que podiam chegar ao golo e foram premiados por isso.
Partimos para o jogo com Lisboa, com todas as possibilidades, sabíamos que uma vitória nos deixaria pela primeira vez numa final, mas também que a derrota nos iria remeter para o jogo de atribuição do 5.°/6.° classificados, era por isso essencial fazer 60 minutos assentes numa inteligência tática e emocional que nos permitisse ser assertivos na tomada decisão com e sem bola.
Os minutos finais foram um autêntico carrossel de emoções, desde o sentimento de alívio do penalti falhado por Lisboa, ao sofrimento de também nós termos desperdiçado um pontapé de penalidade no período de compensação, até à explosão de alegria do golo e a consequente vitória que valeu a Final.
Quais os três momentos que elege como mais marcantes vividos ao longo dos sete dias de torneio?
Tivemos momentos incríveis e marcantes ao longo de toda semana.
Abrindo aqui um bocadinho dos nossos bastidores, fomos para os três últimos jogos com a preparação de um vídeo motivacional que contou com o testemunho de familiares e de vários jogadores e treinadores sobejamente conhecidos do panorama nacional (a quem agradeço pela disponibilidade e incentivo).
Sentíamos todos nestes momentos uma comunhão de sentimentos, intenções e ações que nos faziam crescer enquanto grupo.
Mencionar o golo de bicicleta do Dinis Pinheiro na Final é tudo aquilo que nos faz apaixonar pelo jogo, mas também o golo do Leonardo Paulin frente a Lisboa nos instantes finais, não só pela sua beleza, mas pela importância do momento e pela alegria indescritível que nos fez viver.
Por último a lesão do Medgilson Sacramento, que não sendo um acontecimento feliz, foi um momento marcante de fortalecimento do grupo. Quem esteve no balneário do jogo com Lisboa, sabe o peso e a influência que aquela camisola 11 teve.
Porque é que o Lopes da Silva é reconhecidamente uma experiência única?
Falamos do maior torneio de formação do país, que reúne os melhores 440 atletas da sua geração em representação das 22 associações de futebol do continente e ilhas, que conta com a presença de todos os selecionadores nacionais de formação e que tem tido nos últimos anos cada vez maior visibilidade com cobertura televisiva dada pelo canal 11.
Depois o Torneio Lopes da Silva, à semelhança do seu patrono, tem um espírito muito próprio, devolve-nos a essência do futebol aos seus maiores princípios e valores.
A forma como fomos recebidos no hotel pela comitiva de AF Évora depois de termos perdido a Final, a partilha de momentos com a Taça entre a comitiva de Setúbal e Madeira, nos respetivos caminhos para casa, ilustram bem o que estou a dizer e mostram que o futebol é e será sempre mais do que um jogo.
O estatuto de vice-campeão, que significado tem para o âmbito associativo e para a relevância daquilo que é o contexto de seleção distrital?
Os resultados são sempre uma consequência do processo.
A chegada a duas finais nacionais interassociativas consecutivas [n.d.r: sub-16 femininas, em 2022 e sub-14 masculinos, em 2023] reforçam a convicção que temos no trabalho desenvolvido.
Olhamos sempre de forma quantitativa para a obtenção de resultados desportivos como elemento avaliador das competências de um treinador, e aqui também não escondemos que é nossa responsabilidade colocar as nossas seleções de formação nas fases mais adiantadas das provas onde estão inseridas, a competir com as melhores seleções do país, pois são estes jogos que nos proporcionam contextos de aprendizagem mais ricos, com estímulos e desafios maiores.
Mas a nossa prática continua a ser essencialmente centrada no Jogador/a, na forma como nos conseguimos ligar, na empatia, respeito e compromisso que estabelecemos com aqueles que chegam ao espaço seleção, numa metodologia de treino que os ajude a encontrar soluções, a descobrir caminhos que resolvam os problemas que o jogo coloca, a criar uma forma de jogar que possa exponenciar o talento e as melhores características dos jogadores.
A valorização do jogador da nossa região está cada vez mais reconhecida?
Setúbal foi, é, e será sempre um viveiro de talentos emergentes para o futebol português.
A verdade é que nos últimos anos têm sido difícil lutar contra a centralização do talento. São cada vez mais os atletas masculinos e femininos que precocemente chegam aos quadros dos ditos "grandes", não sendo esta uma crítica, mas uma constatação.
Isto leva-nos a uma constante adaptação no reinventar da descoberta de novos talentos e na potencialização das suas características. E aqui deixo uma enorme menção aos treinadores de formação do nosso distrito, que fazem um trabalho incrível no desenvolvimento dos seus jogadores, em condições muitas vezes difíceis e que abdicam muitas vezes dos seus tempos livres e das suas famílias para 'alimentar' esta enorme paixão.
Acredito que o sucesso desportivo dos nossos clubes deva passar pela aposta na formação desportiva e social nos escalões de formação, e acredito que estamos a dar passos importantes nesse sentido.
Uma palavra para os nossos 20 vice-campeões...
Fizeram História! Mas mais importante que a dimensão do que alcançaram com esta presença inédita na Final, serão as recordações de tudo o aquilo que vivemos.
Foi para nós um privilégio enquanto equipa técnica fazer esta viagem com todos.
Novos desafios e conquistas vão chegar e lembrem-se sempre que só o talento não chega. É preciso manter a humildade, foco, resiliência e que nada é impossível quando se acredita e se trabalha.